Apesar das cavernas serem constituídas por espaços (vazio) que variam significativamente em relação a suas dimensões (desde poucos metros até centenas de quilômetros), elas possuem em seu interior uma grande diversidade de espécies que evoluíram e se especializaram nestes ambientes. A ausência permanente de luz e a escassez de recursos alimentares, exercem forte pressão seletiva sobre as espécies cavernícolas, de tal forma que uma quantidade expressiva de espécies possui expressivas especializações a este tipo de ambiente e, portanto, são incapazes de sobreviverem fora do meio subterrâneo. Sendo assim, tais espécies interagem entre si em um ecossistema fascinante e complexo, resguardando um potencial imensurável de informações sobre a evolução da vida e do nosso planeta.
Na história da biologia subterrânea os besouros são icônicos. O primeiro invertebrado cavernícola descrito no mundo foi um besouro. Em 1832 o naturalista Ferdinand J. Schmidt deu o nome de Leptodirus hochenwartii a um besouro cego, caramelado e de pernas alongadas. Esse besouro foi encontrado pela primeira vez em 1831 pelo conde pe. von Hochenwart que explorava parte do sistema de cavernas Postojna, sudoeste da Eslovênia. Desde então diversas espécies de besouros cavernícolas foram descritas. Os besouros compreendem o grupo de insetos com mais representantes troglóbios o mundo. No ambiente aquático subterrâneo há grande destaque à família Dytiscidae, sendo a mais representativa, e dentre os besouros terrestres cavernícolas as famílias Leiodidae e Carabidae.
De forma geral, os besouros compreendem o maior número de espécies dentre todos os seres vivos do planeta com aproximadamente 400 mil espécies conhecidas. Nas cavernas eles também representam um dos grupos mais abundantes e diversos com representantes de diferentes famílias, dentre elas Carabidae, Staphylinidae, Tenebrionidae, Dermestidae, Curculionidae, Scydmaenidae, Leiodidae estão entre os grupos mais recorrentes em nosso país. No Brasil, até o momento foram descritas 18 espécies de besouros troglóbios (espécies que só ocorrem em ambientes subterrâneos, incluindo as cavernas), sendo treze da família Carabidae, quatro da família Staphylinidae e uma da família Dytiscidae. Dentre estas espécies, apesar do elevado endemismo da grande maioria delas, apenas dez se encontram em listas oficiais de espécies ameaçadas (Tabela 1). O grupo mais representativo dentre os besouros troglóbios brasileiros descritos e que engloba a espécie selecionada para esta primeira participação brasileira na campanha do “Animal Cavernícola do Ano Internacional” é o gênero Coarazuphium Gnaspini, Vanin & Godoy, 1998 que teve sua primeira espécie descrita em 1990 e que hoje conta com onze espécies publicadas, sendo todas espécies subterrâneas.
Nos últimos anos, o avanço dos estudos sobre os coleópteros troglóbios no Brasil vem expandindo consideravelmente o conhecimento sobre a distribuição deste grupo nas cavernas brasileiras. Na década passada conheciam-se ocorrências em quatro estados brasileiros: São Paulo, Goiás, Bahia e Minas Gerais. Hoje já são conhecidos oito estados com ocorrências deste grupo, acrescentando Tocantins, Pará, Paraná e Mato Grosso (o último em processo de descrição). Uma base de dados compilada a partir de material encontrado nas principais coleções de fauna cavernícola do país, indica duas regiões no território nacional que se destacam pela diversidade de coleópteros troglóbios. A primeira localizada em cavernas ferríferas da Amazônia oriental, nas Serras de Carajás, estado do Pará (nove espécies, três ainda não descritas). E a segunda na região sudeste do país, estado de Minas Gerais (cinco espécies, uma não descrita). Em comum, além da expressiva diversidade de espécies troglóbias, as duas regiões são importantes polos de mineração no Brasil, o que requer atenção especial para a proteção da biodiversidade subterrânea regional. Além disso, considerando as espécies troglóbias e não troglóbias, existem centenas ou milhares de espécies a serem descobertas e posteriormente descritas pela ciência.
Embora o número de espécies descritas tenha aumentado nos últimos anos, este processo é lento e, atualmente, muitas espécies troglóbias acumulam-se nas coleções biológicas sem que haja descrição formal. Em grande parte, isso se deve à escassez de recursos humanos e financeiros destinados tanto à formação de taxonomistas quanto à absorção desses profissionais no mercado de trabalho em nosso país. O atraso nas descrições e ausência de avaliações sobre o status de conservação das espécies são consequências extremamente preocupantes. Infelizmente, a descoberta de novas espécies, mesmo que troglóbias, não garante a preservação de seu hábitat de ocorrência (cavernas), a não ser que a espécie seja considerada endêmica (distribuição restrita), rara ou esteja nas listas oficiais de espécies ameaçadas de extinção. No entanto, esta avaliação só é possível após a realização de estudos específicos que permitam uma efetiva análise sobre seu padrão de distribuição nos ambientes subterrâneos.
Locais de ocorrência das espécies de besouros troglóbios conhecidos no Brasil
Espécies brasileiras de besouros troglóbios descritos até o momento
ID | Família | Espécie | Autores e ano da descrição | Estado |
1 | Carabidae | Schizogenius ocellatus * | Whitehead, 1972 | São Paulo |
2 | Carabidae | Coarazuphium tessai * | Godoy & Vanin, 1990 | Bahia |
3 | Carabidae | Coarazuphium bezerra * | Gnaspini, Vanin & Godoy, 1998 | Goiás |
4 | Carabidae | Coarazuphium cessaima * | Gnaspini, Vanin & Godoy, 1998 | Bahia |
5 | Carabidae | Coarazuphium pains * | Alvares & Ferreira, 2002 | Minas Gerais |
6 | Carabidae | Coarazuphium formoso * | Pellegrini & Ferreira, 2011 | Bahia |
7 | Carabidae | Coarazuphium tapiaguassu * | Pellegrini & Ferreira, 2011 | Pará |
8 | Dytiscidae | Copelatus cessaima * | Caetano, Bená & Vanin, 2013 | Pará |
9 | Carabidae | Coarazuphium caatinga * | Pellegrini & Ferreira, 2014 | Bahia |
10 | Carabidae | Coarazuphium ricardoi * | Bená & Vanin, 2014 | Paraná |
11 | Carabidae | Coarazuphium amazonicum | Pellegrini & Ferreira, 2017 | Pará |
12 | Carabidae | Coarazuphium spinifemur | Pellegrini & Ferreira, 2017 | Pará |
13 | Staphylinidae | Metopiellus painensis | Asenjo, Ferreira & Zampaulo, 2017 | Minas Gerais |
14 | Carabidae | Ardistomis ferreirai | Balkenohl, Pellegrini & Zampaulo, 2018 | Pará |
15 | Staphylinidae | Oxarthrius aurora | Asenjo, Zampaulo & Ferreira, 2018 | Tocantins |
16 | Staphylinidae | Oxarthrius inexpectatus | Asenjo, Zampaulo & Ferreira, 2018 | Minas Gerais |
17 | Staphylinidae | Metopioxys carajas | Asenjo, Pietrobon & Ferreira, 2019 | Pará |
18 | Carabidae | Coarazuphium lundi | Pellegrini, Ferreira, Zampaulo & Vieira, 2020 | Minas Gerais |